Capítulo 1: Periperi

Periperi

O que se sabe do princípio de Periperi, o que se conta, o que se diz é que era uma aldeia indígena, habitada pelos tupinambás. A grafia primitiva, peripery, piripiri ou piri-piri, significando, para uns, capim-capim ou capinzal, e, para outros, espécie de junco que cresce nos terrenos pantanosos e do qual se fazem esteiras.

Em 1853, o governo imperial autorizou a concessão para a construção de uma estrada de ferro ligando a Cidade da Bahia, como muitos se referiam a Salvador, à Vila de Juazeiro. Essa concessão foi transferida a um grupo de empresários ingleses em 1855. E já no ano seguinte, começavam as obras da Estrada de Ferro Bahia ao São Francisco, a primeira ferrovia baiana. O trecho inicial, que ia da Calçada a Paripe, foi inaugurado em 1860. Através de estações e de oficinas, o trem levaria grandes mudanças a uma região que passaria a ser conhecida como o Subúrbio Ferroviário.

No início do século XX, devido a uma grande crise, foi necessária a intervenção do governo federal nas ferrovias brasileiras. Todas foram unificadas e passaram a ser administradas pela Compagnie de Fer Federaux du l’Est Brésilien, uma empresa franco-belga. Já em 1934, após nova intervenção, e sob o comando do engenheiro Lauro de Freitas, a ferrovia baiana passava a ser chamada de Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, mais conhecida como “a Leste”.

Em 1939, o petróleo seria encontrado no subúrbio de Lobato. Ao longo dessa mesma década, Periperi, uma enseada da Baía de Todos os Santos, banhada pelo rio Paraguary, cujo nome significa rio dos Papagaios, continuou a se desenvolver como bairro residencial. Desde as últimas décadas do século XIX, a edificação de algumas casas dera origem a uma rua longa, a rua da estação, oficialmente chamada de Av. Dois de Julho, porém por todos conhecida como Rua da Frente. Nela moravam funcionários da Leste. Já a diretoria, os mestres de linha e os mestres de obra tiveram suas belas casas construídas do outro lado dos trilhos, e mais perto do mar.

Muitos dos ferroviários, porém, moravam por todo o povoado, e outros mais chegavam de trem para trabalhar nas oficinas, galpões que ficavam depois da Rua dos Coqueiros, perto da praia. Durante toda a noite, um vigia badalava as horas num sino. Trajando azul (calça, blusão e boné), esses homens começavam a trabalhar às 7 da manhã, na fundição, tornearia, carpintaria, e na manutenção dos vagões, máquinas e linhas do trem. Dizem que, às 11h, quando a sirene apitava para o almoço, e mais ainda às 4 da tarde, quando acabavam o expediente, esses homens enchiam as ruas do azul escuro e sujo de suas roupas, como um rio.

Também colônia de pescadores, nos anos 30 e 40, Periperi se tornou um local de veraneio para famílias tradicionais de Salvador. Entre seus visitantes, o escritor Jorge Amado, que aqui concluiu, em 1944, o seu livro São Jorge dos Ilhéus. Já no romance Os velhos marinheiros ou O capitão-de-longo-curso, publicado em 1961, imortalizou o subúrbio, fazendo dele o lugar escolhido por seu protagonista para viver seus últimos anos. O comandante Vasco Moscoso de Aragão chega de trem em Periperi, que é descrito como um “florido burgo suburbano, onde tudo é doce e manso, mesmo o mar, mar de golfo onde jamais se elevam ondas furiosas.”

Toda essa terra tinha, ainda, um só proprietário. O dono da Fazenda Periperi já não era o Coronel Frederico Costa, mas Dr. Visco, a quem era pago o arrendamento dos lotes. O seu genro, Almáquio, construiria muitas casas de aluguel, a princípio perto da metalúrgica. Nesse tempo, ainda eram visíveis as valas de água transparente e os muitos riachos e córregos que cortavam os caminhos, alguns afluentes do rio Paraguary. Muitos também eram os charcos, os sapos, as jias e as cobras que surgiam com a chuva. Por suas ruas de barro, não passavam carros, mas carroças, cavalos, bois, além da gente do lugar, que tinha o ar de interior, entre o mar tranquilo e a mata fechada. Essa mata escondia fontes de água fresca, nascentes, minadouros, como a Fonte do Capim e Mané Paulo, aonde as lavadeiras chegavam com suas trouxas de roupa na cabeça, e de onde os homens saíam empurrando grandes barris de madeira, que tinham uma alça de ferro e duas correias de borracha; esses barris, que iam rolando, foram apelidados de “rola-rola”. Barris menores eram carregados por jegues. Os moradores se viam obrigados a ir buscar ou a comprar essa água cristalina, já que a água das bombas era salobra, “água de gasto”, servindo só para os banhos, o chão, os pratos e as plantas.

Nesse Periperi pacato, sobre um charco aterrado (sob o qual se escondem conchas), o fiscal dos cobradores de trem da Leste Natanael Alves da Palma, construiria um bonito casarão, no nº 6 da Rua Frederico Costa, para o qual, no dia 15 de maio de 1939, meses antes do início da II Guerra Mundial, mudaria-se com a companheira, Amélia de Araújo Ramos, e os filhos, Natanael Alves da Palma Filho e Eunice Alves da Palma, então, respectivamente, com três e sete anos de idade. (Carminha, a caçula, falecera de repente, quando a família ainda morava na Calçada).

Descendente de escravos, Natanael nasceu em 1885, três anos antes da abolição da escravatura no Brasil. Residiu algum tempo em Canavieiras, estudou até o terceiro ano primário, tocava piston, fez parte de várias filarmônicas, escrevia belos poemas, e, aos treze anos de idade, aprendeu o ofício de marceneiro. Antes de conhecer Amélia, que com ele fugiu de um homem que a maltratava, amou outras mulheres; com Maria José teve uma filha de nome Elza, mais conhecida como Zazá; com Alice, porta-estandarte nos ternos de reis, teve a menina Joselita. Trabalhava como marceneiro no escritório da Leste, quando um dia teve a felicidade de conhecer o diretor, Dr. Lauro Farani Pedreira de Freitas, homem que se tornaria o seu maior amigo, a ponto de impedir, anos mais tarde, após um acidente de trem, que lhe amputassem um pé, como queriam os médicos, dizendo-lhes que buscassem o que fosse preciso e gastassem o necessário. Natanael e Amélia só se casariam oficialmente por sugestão de Dr. Lauro, ou talvez por imposição deste, antes de aceitar batizar, com sua mulher, dona Vivi, o menino Natan.

A grande casa construída em Periperi era branca com janelas verdes. Nas janelas da fachada, arqueadas, as vidraças eram coloridas, como vitrais. Seus muitos cômodos eram enormes, com móveis estilo Luís XV, cadeiras altas, toalhas de mesa bordadas, cantoneiras, luminárias, cristaleiras, armários imensos, muitos lustres, um sofá de veludo verde e um chão de taco envernizado, que tudo refletia. Entrava-se na casa pela “sala grande”. Seguindo um longo corredor, chegava-se aos quartos, ao oratório e à sala de costura, onde dona Amélia fazia as roupas da casa, panos de prato, lençóis, camisas, vestidos. Um desses quartos era a despensa, onde nada faltava: sacas de farinha, feijão, açúcar; peças de carne de sertão, toicinho e chouriça penduradas em ganchos, assim como tranças de cebola e alho; caixas de bacalhau seco; grandes latas de biscoitos; caixotes de pinha, sapoti, umbu. Parecia um minisupermercado!

As largas janelas de madeira, espalhadas por toda a casa, arejavam o seu interior, trazendo para dentro o cheiro das flores que enfeitavam o jardim e atraíam as borboletas; eram rosas, angélicas, margaridas, dálias, a começar pelo jasmim, numa cobertura de arame que ia do portão à varanda da frente, onde o piso de cerâmica vermelha era um mosaico de hexágonos. Além das flores, árvores: coqueiros, araçazeiros, bananeiras, laranjeiras, limoeiros, pés de pinha, e um jenipapeiro que jamais deu fruto, mas que ainda resta, assim como sete mangueiras, plantadas por Natanael ao redor da casa. No quintal, viviam muitos animais: galinhas, patos, perus, cágados, porcos, pássaros, gatos, burros e pastores alemães, que faziam a guarda. Havia uma varanda numa das laterais, com bancos de madeira, espreguiçadeiras e muitas plantas. O muro em volta da casa era baixo, e dele se via a praia e o mar cintilando ao longe. O pão e o leite eram deixados de manhã, e ali ficavam, atrás do portão, até que alguém acordasse. Em frente à casa, corria um córrego, à beira do qual pairavam libélulas.

Nessa casa cresceria feliz a menina Nicinha, como demonstram suas próprias palavras deixadas num caderno:

 

A minha infância foi linda, como a de um conto de fadas, meus pais sempre acompanhando as minhas brincadeiras. Tive muitas bonecas e era a professora das minhas bonecas; desde criança a vocação de educadora aflorou. Papai Noel todo ano enchia os meus sapatos de brinquedos. Nunca apanhei, nem uma palmada! Só falavam mais alto comigo no dia em que eu teria que tomar remédio de vermes! Aí era difícil; minha mãe correndo atrás de mim, em volta de nossa casa, com o remédio na mão! A nossa casa era linda; meu pai fez com muito bom gosto, característica dele. Havia jardins em volta da casa e um quintal enorme! Meu pai plantou sete mangueiras que ainda existem, e as mangas são deliciosas.

 

Ela às vezes declamava poesias ou pequenos textos aos convidados das muitas festas, reuniões e jantares políticos que seu pai organizava na época de eleições, com boas orquestras e muita alegria. Nessas ocasiões também tocava piano, instrumento ao qual se dedicava diariamente, sendo aluna das professoras Nilza Costa e Ranulfa Santana. Quem passava pela porta ouvia a melodia de alguma música clássica, algum noturno de Chopin, algum concerto de Beethoven; havia quem parasse para apreciar tanta beleza.

O Prédio Escolar Anfilófio de Carvalho, antiga Casa Vermelha, na rua atrás da Igreja Nossa Senhora da Conceição dos Artistas, foi a sua primeira escola, onde cursou o primário, de 1939 a 1943. Sua primeira professora foi Maria José Santana. Entre suas colegas, Railda Oliveira, Ogvalda Deway, e Edna Santana, mais conhecida como Nedinha. Também tinha aulas particulares de francês com Madame Blanchet, uma francesa que residia em Periperi.

Prof.ª Ranulfa e Prof.ª Laura eram as organistas das missas da igreja, que tinha um coro muito afinado. Isso depois da reforma de 1946, quando passou a ser um ponto de encontro festivo. Antes disso, era uma capela simples, construída pela diretoria da Leste, com piso de madeira bem elevado. Na parte de baixo, guardavam-se cabras.

No princípio, a feira de Periperi era na praia, às sextas-feiras. Quando as canoas e os saveiros aportavam, vindos de Nagé, Mar Grande, Maragogipe e Bom Jesus dos Pobres, sopravam um búzio, cujo som ia longe, chamando os moradores para as compras. Chegavam carregados de sacos de banana, coco, carvão, laranja, cana, rapadura. O feijão, a farinha, o arroz e o açúcar não eram pesados na balança, mas vendidos por medida de um litro, usando-se um quadrado de madeira. Também traziam tapioca, beiju, pamonha e peixe seco, pois poucos tinham geladeira. (Só a partir de 1948, devido à necessidade de eletrificar as linhas do trem, os moradores do subúrbio seriam beneficiados com a chegada da energia elétrica, abandonando aos poucos os lampiões, os candeeiros e a luz de velas).

Em noites de lua, muitas crianças corriam picula na praia. De dia, quando não estavam na escola ou trabalhando em tarefas domésticas, divertiam-se brincando de se enconder, empinando arraias, jogando pião, gude, pulando macaco, corda, chicotinho queimado ou cantando cantigas de roda. De vez em quando, um circo aparecia por Periperi, e era armado num areal, onde hoje é a Praça da Revolução. Entre suas atrações, o palhaço Tontolino, a sambista Zita Sanches, mágicos, rumbeiras, trapezistas, equilibristas e um homem que engolia fogo e espadas. Havia também macacos, cães, cavalos e feras amestradas, orquestra, cantores, comediantes e atores dramáticos. Uma das peças apresentadas se chamava E o Céu Uniu Dois Corações. Os meninos sem dinheiro para pagar a entrada, entravam ainda assim – bastava passar por debaixo da cerca.

Além do circo, da praia, do baba, das mariscagens diurnas e noturnas, havia como diversão um pequeno cinema, onde eram vistos filmes de bangue-bangue, Tarzan, Zorro, muitos mexicanos e inúmeras comédias, de Mazzaropi, e também de Oscarito e Grande Otelo. Ficava na Rua da Frente, e a princípio pertencia a Sr. Aníbal Cajado. Depois, teria outros donos: Bilô, o escrivão, e José Moiños, um espanhol. Ao deixar de funcionar, o cinema cedeu o espaço à delegacia. Bilô construiria um novo, na Rua do Futuro, o Cine Plaza.

No dia 6 de janeiro, havia os ternos de reis. No Carnaval, blocos e cordões. Na Sexta-Feira Santa, ao som de matracas, passava a procissão do Senhor Morto. No dia 1º de junho, começavam a rezar as trezenas de Santo Antônio – a dona da casa abria os cânticos e incensava os cômodos. No Sábado de Aleluia, havia a queima de Judas. No São João, balões, fogueiras, foguetes e outros fogos de artifício, busca-pés, bombas, espadas e traques. Alegres, dançavam quadrilha e celebravam o casamento da roça. À mesa não faltavam licores, canjica, amendoim e muitos bolos, de aipim, carimã e milho. No Natal, faziam quermesses, armavam presépios, arrumavam a casa e, para atrair bons fluidos, tinham o costume de enfeitar jarros com galhos de pitangueiras e de jogar punhados dessas folhas no chão, que muitas vezes era batido.

Mas no dia a dia, a diversão era mesmo passear na estação de trem, e na rua que lhe era paralela, a Rua da Frente. Caminhavam de braços dados, em meio a pés de tamarindo e amendoeiras, indo e voltando até a Rua dos Coqueiros. Conversavam, namoravam e se sentavam em cadeiras colocadas na frente das casas, enquanto aguardavam a chegada dos trens – queriam ver o desembarque das famílias e observar se tinha alguém novo chegando ao bairro.

Através do trem, se dava a comunicação com outros lugares, ligando Salvador a vilas, municípios e cidades do interior da Bahia e de outros estados. Da Calçada ia-se a Alagoinhas, passando por Camaçari, Dias d’Ávila, Mata de São João, Pojuca, Catu e Sítio Novo. Pela linha Trem do Sertão, chegava-se a Juazeiro e Petrolina. Pela Estrela do Norte, num expresso de luxo, a Aracaju e Propriá, na divisa de Sergipe com Alagoas. Algumas dessas viagens eram longas, em trens noturnos e carros leitos, demorando até dois dias, como a que tinha destino a Monte Azul, em Minas Gerais, passando por Candeias, Santo Amaro, Cachoeira, Cruz das Almas, Castro Alves, Iaçu, Brumado, Vicente de Almeida, Urandi, Espinosa e Montes Claros.

Durante a viagem de Periperi até a Calçada, das janelas dos vagões, só se via o mar de um lado e o verde do outro. Em 1945, aos treze anos, a menina Nicinha começou a fazer esse percurso diariamente. Da Calçada, pegava o bonde ou a marinete até o Bonfim. Era aluna do Ginásio São José, instituição de ensino sugerida ao seu pai por Dr. Almeida, onde suas filhas Jucely e Almenita estudavam. Dono da Pharmácia Almeida, na verdade ele não era médico e sim farmacêutico, mas receitava, indicava remédios, aplicava injeções. Devido ao charco e à umidade, as queixas mais frequentes eram a gripe, diarreia, alergia e asma. Mas quando o trem de Alagoinhas se chocou com o de Paripe, na ausência de postos de saúde, passageiros com ferimentos leves e graves foram parar em sua casa, em sua sala, nos quartos e camas de seus filhos. Todos o chamavam de doutor, mas médico formado era Dr. Deway, que além de trabalhar na cidade, atendia no subúrbio a partir das 17h, e nos finais de semana.

As viagens de trem eram tranquilas. Mas às vezes havia atrasos ou cancelamentos de última hora, devido a algum descarrelhamento de vagão, quebra de locomotiva ou forte chuva. Nesses dias, Jucely, Almenita e Nicinha não iam à escola, a não ser que Dr. Almeida, um dos poucos que possuíam carro, as levasse no seu Ford 37. Pegavam as curvas da Estrada Velha, chegavam a São Caetano e desciam até a Calçada. Acontecia também de tomarem o trem ou caminharem até Plataforma, onde embarcavam numa canoa que as levava à Ribeira. Dona Olga, a mulher de Dr. Deway, recorda que, quando jovem, adorava pôr a mão na água, durante a travessia. Já Nicinha, talvez por não saber nadar, tinha pavor a viajar de canoa.

Do Ginásio São José, ela levou boas lembranças:

 

Tive excelentes professores, como Irmã Cecília (francês), Irmã Pureza, Irmã Inês, Prof. Sepúlveda e Prof. José Newton Alves de Souza (português), que anos mais tarde se tornaria escritor e presidente da Academia de Letras da Bahia; esse último marcou minha vida positivamente, porque era de uma delicadeza, compreensão e educação que faziam bem a todas as alunas.

 

Ao mesmo tempo, estudava piano no Instituto de Música da Bahia. Tocou em vários concertos e audições e formou-se em professora de música em 1951. Tinha então dezenove anos. Com as colegas de piano, participou de uma embaixada para o Rio de Janeiro, como eram chamadas as excursões. Foi a primeira vez que viajou de avião, pela Panair do Brasil. Ficaram hospedadas na Escola de Enfermagem Ana Nery, no bairro de Botafogo. Passearam muito. Foram ao Cristo Redentor, Pão de Açúcar, Copacabana e à Casa do Estudante do Brasil, onde dançavam aos domingos.

Em casa, começara a dar aulas de piano. Sônia Pinto foi a sua primeira aluna, uma adolescente que ela abraçava, beijava e queria ver coroada Miss Periperi. Nessa época, o tapete colorido da sala grande já estava gasto. Sônia se sentava no banquinho giratório, e juntas tocavam músicas como “Noite feliz” e “Se essa rua fosse minha”. Essas aulas durariam só uns seis meses, mas as palavras “minha primeira aluna de piano” permaneceriam vivas e plenas de carinho sempre que ditas em público ou murmuradas ao ouvido de Sônia cada vez que se encontravam.

Porém, ao contar ao pai que pretendia seguir a carreira de magistério, ele lhe disse que não. Naquela época, depois de formadas, as professoras viajavam para lecionar no interior, e ele não queria ter a filha longe. Ela acatou a decisão do pai e, para satisfazê-lo, começou a estudar contabilidade, profissão para a qual não tinha nem vocação nem entusiasmo. De 1950 a 1953, foi aluna do Instituto Feminino da Bahia, no Politeama, sob a rigorosa direção da Sr.ª Henriqueta Martins Catharino. Estudou com dona Henriqueta, dona Laurentina, Dr. Orlando Bahia Monteiro e Prof. Oliveira Neto.

Ali, onde era uma das poucas estudantes negras, Nicinha fez muitas amizades, algumas com quem manteve contato por toda a vida, matando as saudades em reencontros anuais. Às vezes, acabava conhecendo as famílias de suas colegas:

 

Fiquei muito amiga de Maria Emília Gonçalves, filha de dona Jandira e Sr. Manoel (ele era português). Todos me tratavam muito bem. Quando eu chegava para o almoço, ele chamava Matilde, a cozinheira, e dizia assim: “Matilde, chegou Eunice, faça o molho dela!”; porque sabia que eu gostava de pimenta. Aprendi muito com essa família, especialmente com dona Jandira, que era a bondade em pessoa. Sem orgulho, sem preconceito, sem egoísmo. Como aprendi com a senhora, dona Jandira! O motorista era Tião; ele almoçava na mesa com a família! Numa época em que havia muita separação entre patrões e empregados. Obrigada, dona Jandira, por suas lições de vida.

 

Em 1953, ano em que se formou em técnica em contabilidade, o Instituto Feminino fez uma embaixada a Recife. Nicinha viajou com as colegas. Ficaram hospedadas no Grande Hotel de Recife e foram a festas no Náutico Internacional.

Em Periperi, antes da existência de clubes, havia festas sob a arquibancada de madeira, num dos lados do campo de futebol. Já no final da década de 40, aconteciam bailes no quintal de uma das casas de Sr. Aníbal Cajado, em frente à arquibancada, dando início ao Palácio da Alegria, o primeiro clube particular do subúrbio, semente do que mais tarde seria o Esporte Clube Periperi. Próximo a este, em 1950, foi fundado o Flamenguinho Esporte Clube. Existia certa rivalidade entre essas duas associações, assim como entre os seus times de futebol. Natanael podia assistir aos jogos da própria varanda, pois não havia nem muro nem arquibancada nesse lado do campo, apenas uma cerca baixinha.

Esses eram considerados os clubes de elite, com grandes bailes, desfiles de moda e orquestras internacionais. Mais simples, havia também o Clube dos Ferroviários, que ficava na Rua da Frente, e era frequentado pelos funcionários da Leste e suas famílias.

Em 1956, surgiu o conjunto musical Tapajós, que no ano seguinte, passou a animar o Carnaval do Subúrbio Ferroviário. Orlando Campos, mais conhecido como Orlando Tapajós, então presidente do Flamenguinho e dono de uma pequena oficina no Barreiro, seria o idealizador da carroceria elétrica, criando toda a estrutura metálica do carro do trio elétrico, a grande invenção de Dodô e Osmar. Ele também criaria o seu próprio trio, o Tapajós.

Nicinha adorava festas, e sempre frequentava o Flamenguinho. Integrante da ala feminina do clube, era ela quem organizava vários eventos, como o baile de debutantes de 1959, no qual nem todas as participantes tinham quinze anos, mas idades que variavam dos treze aos dezessete. Era ela quem ensaiava com as moças, entre as quais Cecé, Emilinha e Sônia, para os desfiles de moda, as coreografias e apresentações, trazendo roupas de suas amigas do Instituto Feminino. Era ela quem abria os bailes, dançando com o amigo Messias. Era ela quem dava as diretrizes do que se fazer, de como se portar. As pessoas iam à sua procura para saber que talher usar num determinado jantar, que roupa vestir numa certa cerimônia. Com que brinco? Luva curta ou comprida? Bolsa ou carteira? O sapato deveria ser forrado com o tecido do vestido ou não? Além disso, ela lhes emprestava suas roupas, seus colares, suas joias – gesto que realizaria com total desapego até o fim da vida.

Por que tantos se dirigiam a ela? Por que confiavam tanto em sua opinião? Por estudar em bons colégios? Por morar numa bela casa? Por viver uma vida de princesa? Muitos olhos estavam voltados a Nicinha, olhos de admiração, mas também de inveja. Afinal de contas, aquela moça negra tinha muito mais do que muitos. E era tão elegante! Dizem que muitas imitavam o seu andar, sua postura ao caminhar de salto alto, seu estilo. Usava vestidos de cassa, de seda, de organdi bordados, pregueados, saias volantes bem rodadas, de bons tecidos comprados na Baixa dos Sapateiros, ou na loja Duas Américas, na Rua Chile, onde de luva e carteira, meia e sapato alto, moças elegantes desfilavam ao cair da tarde.

Ao maquiar-se, às vezes exagerava no pó compacto; seu batom era vermelho vinho, sem brilho; nos olhos, nada além dos óculos de lentes grossas. Gostava muito de se perfumar com aromas franceses, dentre os quais Diorissiomo, Fleur de Rocaille, Vetiver e Ma Griffe. Vestia-se bem para ir aos bailes, mas também ao Ginásio Monteiro Lobato, primeiro de Periperi, na Rua Carlos Gomes, onde começou a dar aula de canto orfeônico, em 1954.

Pouco depois, começou a trabalhar como funcionária federal do I.A.P.C. (Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários), no Comércio. Pegava diariamente o trem das 11h. Mas antes de chegar à estação, gostava de passar pela Travessa Aurora. Ao vê-la aproximar-se do nº 4, o dono da Pharmácia Almeida dizia carinhosamente: “Lá vem Minha Simpatia!” Ela deixava o trabalho às 17h. Da estação, fazia o mesmo percurso a pé, sempre parando para cumprimentar Dr. Almeida, que logo lhe mandava entrar para falar com sua esposa: “Vá lá ver Carmé”. A casa ficava atrás da farmácia. Além de dona Carmelita, ela via suas filhas, Jucely, Maísa e Sônia. Na varanda, ela sentava para tomar café, conversar e comer bolo.

Nicinha teve alguns admiradores e paqueras. Mas namorou mesmo com Nivaldo, um jogador do América de Plataforma, subúrbio onde residia. Os dois eram apaixonados um pelo outro, mas sofreram o preconceito da família por ele não ter estudo. Acabado o namoro, ouvia-se na sala grande a voz triste de Nicinha que cantava ao piano: “Um de nós dois deve ser o culpado…”