Capítulo 2: Uma escolinha

Uma escolinha

As irmãs de Eunice casaram-se e suas famílias foram crescendo. Zazá e Firmino foram viver em Praia Grande, antes de se mudarem para a Barroquinha. Tiveram cinco filhos: Maria das Mercês, Firmino, Marcos, Alberto e Maria José. Joselita e Geraldo tiveram oito. Nos nomes de todos, o toque da tia: Natanael, Maria Alice, José Geraldo, Ângela Raymunda, Virgílio Aurélio, Francisco Carlos, Ana Amélia e Antônio Henrique. Três desses sobrinhos teriam tia Nicinha como madrinha, mas todos passariam a chamá-la de Dindinha.

A família Palma da Silva morava numa casa próxima à do avô Natanael, de onde se avistava a praia. Quando viam o sol batendo no mar, os netos diziam entre si: “Tá cheia!”. Enchiam-se de vontade. O único perigo para eles, o único empecilho, era a linha do trem. Tinham medo de algum desastre, mas sabiam que o trem só passava em determinados horários; bastava tomar cuidado e prestar muita atenção. Escondidos da avó Alice, ocupada com alguma tarefa doméstica, na cozinha ou no tanque, e sabendo que seus pais só voltariam da Leste, na Calçada, onde trabalhavam como costureira e carpinteiro, no final da tarde, eles corriam para a praia. Lá, tiravam a roupa e mergulhavam no mar. Depois se vestiam apressados e voltavam correndo do mesmo jeito, sem que ninguém desconfiasse; caso contrário, levariam, na certa, uma surra, ou talvez não, pois às vezes chegavam a tempo à casa do avô, que impedia sua filha Zelita de levantar a mão contra seus netos. “Venha, sua valentona de merda!” ele a enfrentava. Ela então recuava, e as crianças se livravam de apanhar.

No final dos anos 50, já aposentado da Leste como oficial administrativo, Natanael voltara a se envolver com o ofício que aprendera ainda menino, a marcenaria. Agora era proprietário da Serraria de Periperi, em sociedade com Eladio, um espanhol que também era dono da Padaria Nova América.

Embora houvesse acatado a decisão do pai, Nicinha não conseguira desvencilhar de si o desejo de ensinar. Ao descobrir, através de Risoleta, que para se abrir uma escola particular não era preciso ser professora formada, a ideia, do coração passou para a cabeça. Ela entrou em contato com Maria Helena, uma jovem que ainda não concluíra o curso pedagógico: “Se eu abrisse uma escolinha, você me ajudava?” Maria Helena disse que sim, e começaram os preparativos.

Informaram-lhe que precisava ser um lugar claro e ventilado. Procurou um espaço para alugar. Chegou a encontrar uma sala, mas depois desistiu. Por que não uma sala em sua própria casa? Por que não? Aquela casa era imensa, uma sala de visita a menos não faria a menor falta, e facilmente podia virar sala de aula. Ou talvez na varanda. Por que não na longa varanda ao longo da casa? Seu pai, que dissera não ao seu sonho de ser professora, diria imediatamente sim à realização de sua escola. Em sua serraria seriam feitas seis mesinhas com quatro cadeiras cada, além de escaninhos para as merendeiras e um gradeado de madeira para separar a varanda do jardim. E que nome dar à escola? Nicinha pensou primeiro no nome do pai, mas não queria causar ciúmes na mãe. Podia talvez se chamar “Tia Eulina”, nome de uma de suas amigas mais próximas. Ou, quem sabe, “Senhora Santana”, homenageando assim uma santa de sua estima. Os nomes iam e vinham em sua mente, sem que ela se decidisse.

Lia livros, revistas e jornais, guardando qualquer artigo que se referisse ao ensino escolar, ávida de conhecimento. Descobriu que, em Curitiba, uma escola modelo treinava e formava professores. Através de cartas, começou a se corresponder com os responsáveis. Mandava-lhes presentes e recebia informações sobre o ensino infantil. Aquela era uma escola modelo! O nome “modelo” causou-lhe impressão. Decerto desejou que a sua escola, ainda em ideia, pudesse, em tempo futuro, servir de modelo a outras. A varanda em que a escola iria existir ficava do lado esquerdo da casa. Dela se admirava o jardim cuidado por dona Amélia. Eram muitos os elogios das visitas que aí chegavam. Alguém, algum dia, disse: “Esse recanto é muito lindo!” Mais uma palavra que se ressaltava, “recanto”. Como peças de um quebra-cabeça que se arma, como rimas que se arrumam para formar um verso, as palavras foram surgindo e unindo-se umas às outras, até formarem um nome único: Escolinha Modelo Recanto Infantil.

Foi assim que nasceu o primeiro jardim de infância do subúrbio. Padre Gaspar Sadock abençoou a Escolinha na tarde do dia 19 de abril de 1959, um domingo. Na segunda-feira, dois dias antes de completar vinte e sete anos, e sem qualquer formação pedagógica, Nicinha passava a exercer a profissão de professora. Começava com quinze alunos, dentre os quais, Fernando, filho de Risoleta, que era então secretária da serraria de seu Natanael. Fernando, o primeiro a chegar, foi também o primeiro a ser matriculado; não por sua mãe, mas pela mãe de Nicinha. Por gostar muito dele, dona Amélia decidira financiar o necessário. Diva, Castelinho, Edméa, Onila e Sandra foram também alunos fundadores.

A nova diretora depositou toda a sua confiança em Maria Helena, no seu trabalho, na sua competência, nas suas ideias, que ia copiando, guardando, aprendendo, enquanto ficava a cargo da parte musical. Não habituados ao conceito de um curso infantil, os primeiros pais matricularam os filhos visando mais o lazer: na longa varanda, no jardim, sob a sombra das árvores. Mas já no segundo ano, a reputação da escola começava a crescer. As pessoas queriam inscrever seus filhos lá, e o número de alunos foi aumentando.

A presença dos pais de Nicinha era uma constante na varanda que virara escola, e as crianças começaram a chamá-los de “vovô” Natanael e “vovó” Amélia. Em 1961, com quase três anos de idade, a menina Lívia descobriu, através da confusão que fez ao tentar dizer as palavras professora e Nicinha, um modo pessoal e carinhoso de tratar a mulher que a chamava de Livinha. Assim nascia o apelido “Sorinha”, apelido que passaria a ser usado por outras crianças, pais de alunos, amigos e conhecidos, ao longo dos anos, das décadas, da vida de Eunice Palma, sobrevivendo na memória de muitos, mesmo após a sua morte.

Na lembrança de alguns desses primeiros alunos, estão a área, o muro baixo, a varanda, as árvores, as mangas que caíam. Castelinho se lembra das festas do Dia das Mães; Fernando jamais se esqueceu da aula de equilíbrio; e Onila traz na memória as mamadeiras que tomava escondida dos colegas, num quarto em que “vovó” Amélia passava roupa.

Permanecem também, em muitos, trechos da oração com a qual se começava (e ainda se começa) o dia naquela escola:

 

Nossa Senhora Santana.

Guiai-me, Jesus bonzinho, pelo caminho do bem,

quero ser bom filhinho e bom aluno também.

Mamãe do céu tão querida, guardai meu coração,

fazei que eu ande na vida guiado pela vossa mão.

Meu doce Jesus, eis o meu coraçãozinho inocente e puro.

É vosso, guardai-o bem, para que as vozes do mundo

jamais venham perturbá-lo.

Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador,

se a ti me confiou a piedade divina,

sempre me rege, guarda, governa e ilumina.

Amém.

 

Niusmende se recorda da farda que vestiam: camisa branca por baixo de uma jardineira; as meninas de saia pregueada e os meninos de short. Já na quarta-feira, dia de educação física, todos iam de camiseta, short, conga e meia brancos. Nas aulas de pintura, usavam aventais de plástico. E os trabalhos eram expostos nos troncos das árvores.

O lanche seguia um cardápio; cada dia da semana, uma merenda diferente: pão com queijo, com doce, com ovo, fruta, água, suco, leite. E antes de abrirem as merendeiras, que eram cor de rosa ou azul, cantavam:

 

Papai do Céu, abençoa essa hora de alegria,

a merendinha tão boa que tu nos dás cada dia.

 

Papai do Céu, abençoa nossa merendinha.

 

Chegou a hora de merendar

eu vou sentar no meu lugar.

Merenda boa e gostosinha

quem preparou foi a mãezinha.

 

A merenda vinha enrolada em guardanapo de pano. Na mesa, os meninos a desenrolavam, arrumavam tudo sobre o guardanapo e aguardavam a indicação da professora: “Podem merendar com educação.” Ela depois lembrava a todos que deveriam mastigar com a boquinha fechada, e não falar de boca cheia.

Chegavam suados do recreio. Cruzavam os braços sobre a mesa, baixavam a cabeça e cantavam calmamente:

 

Quando chego do recreio cansadinho de brincar,

na mesinha, sem receio, deito para descansar.

Oh menino, me responda, que vai ser quando crescer?

Quero ser um astronauta para a Lua conhecer.

 

Além de tanta música envolvida nas atividades diárias, havia a bandinha. Ao som ensaiado de caxixis, triângulos, pandeiros, pratos, dois pauzinhos, reco-reco, coquinhos e tambores, cantavam canções singelas como “Cachorrinho está latindo”:

 

Cachorrinho está latindo

lá no fundo do quintal.

Cala a boca, cachorrinho,

deixa o meu benzinho entrar…

 

Dentro dessa mesma melodia, mudavam a letra e cantavam “Macaquinho no coqueiro”:

 

Macaquinho no coqueiro,

vai subindo sem parar.

Tira o coco, macaquinho,

vai jogando para cá…

 

E, ao fim da manhã, antes de irem embora, a última canção do dia:

 

A sineta vai tocar.

Quem será que nos vem buscar?

Para casa vamos já

a mamãe logo abraçar.

Até logo, coleguinha,

a Escolinha eu vou deixar.

Professora, um beijinho

Amanhã eu vou voltar.

 

Houve um desfile da primavera, à sombra das mangueiras, no qual a passarela era feita de mesinhas. As pessoas ficavam do muro, assistindo encantadas. Já no desfile dos países do mundo, cada um vestia a roupa do país que representava e dizia algo sobre o mesmo.

A atendente Eunice tentou conciliar seus dois empregos, mas a Escolinha foi se mostrando mais importante e falando mais alto. Às vezes faltava ao expediente no Comércio, mais preocupada com o planejamento de suas aulas e com a organização de passeios. Em 1962, comentando que precisava de um carro grande para levar seus alunos ao Jardim Zoológico, acabou tendo a oferta do dono de uma caminhonete. José Muniz Barreto, mais conhecido como Muniz, era de Santo Amaro. Não fazia muitos anos que ele morava em Periperi. Órfão, ainda menino, ele trabalhava na CVB, Companhia de Vidros da Bahia, e no tempo livre era técnico de futebol do Esporte Clube Periperi.

Na volta do passeio, choveu muito. Foi preciso parar para esperar a chuva passar. O que conversaram, como se olharam, o que sentiram nesse tempo, ninguém ficou sabendo, assim como não foi revelado a ninguém, dias depois, que haviam começado a se procurar, a se corresponder, a se encontrar. A razão para manterem segredo era simples e complexa: Muniz era um homem casado.