Capítulo 3: Entre o amor e o medo

Entre o amor e o medo

Naturalmente, mais cedo ou mais tarde, os boatos correriam. A princípio, não mais do que meras suspeitas, suposições, intuições, que aos poucos deram lugar à ausência de dúvida em situações testemunhadas, de perto ou à distância. Entre o amor e o medo, quando interrogada pelo pai, pela mãe, pela irmã Zelita, Nicinha negaria tudo. Mas não conseguindo pôr fim no relacionamento com Muniz, encantados um pelo outro, numa paixão avassaladora, a verdade foi se tornando óbvia aos olhos alheios, principalmente quando, em maio de 1963, a caminhonete em que viajavam na Estrada Velha, após chocar-se com outro automóvel, foi parar numa ribanceira. Um corte no alto da testa encheu de sangue o rosto de Eunice. Esse sangue secou em seus cabelos, deixando-os endurecidos, sendo preciso óleo, pente fino e muita paciência para removê-lo. Já a cicatriz, permaneceria para sempre.

A notícia do relacionamento entre os dois foi um escândalo em Periperi, dando início à primeira fase triste na vida de Nicinha. Seu pai se decepcionou. Seu irmão se distanciou. Sua mãe só fazia chorar. A mulher traída, não querendo dar ao marido a separação, foi fazer cena na porta da escola; juntou-se às moças da casa em frente, filhas de uma mulher que já não tinha simpatia por Natanael. Da varanda, lançavam insultos, palavras duras, ditas com raiva ou risada, ditas para doer. Aqui, vale ressaltar o que, nas palavras de Risoleta, constituía “a civilidade do povo de Periperi”. A Escolinha continuou aberta, nenhum aluno foi retirado às pressas, nenhum pai usou palavras de desprezo, nenhuma mãe a ignorou, nenhum amigo fiel se afastou. Todos sabiam o que estava acontecendo. Todos sabiam da grande dor de Nicinha, ainda que não fosse a única a sofrer com a situação. Alicinha, a mulher de Muniz, demonstrou seu desespero, sua descrença, sua angústia, gritando; Nicinha, se calando. Mas as palavras ditas para doer doeram.

O escândalo se deu pela época, pelo local, pela pessoa envolvida. Nicinha tinha sido educada para ser boa moça, para casar de véu e grinalda com algum homem de nome, e serem felizes para sempre, como o eram (ou fingiam ser) muitos casais. Logicamente, no íntimo, nem todos lhe deram razão, mas em público, muitos a defenderam, alguns com o seu silêncio, outros, com suas palavras.

No entanto, não seria fácil para Nicinha. Revoltado, o irmão da mulher abandonada se voltou contra ela, humilhando-a com comentários ao vê-la passar pela rua ou entrar no trem. Um dia, quando ela saía da estação, na Rua da Frente, os dois irmãos a agrediram com bofetadas. Os óculos de Nicinha caíram no chão. Por conta da miopia, ela ficou desnorteada. Mas foi socorrida por quem passava por perto, por conhecidos e desconhecidos – alguns a acompanharam até a porta de casa.

A ex-mulher de Muniz passou a ir ao trabalho de Nicinha, contribuindo assim para que ela pedisse demissão mais cedo. Mas não se demitiu da escola, nem da vida que queria viver com o homem que escolhera. A revelação do romance entre os dois não diminuiu o amor que sentiam. Estavam apaixonados um pelo outro e dispostos a lutar para ficar juntos. Seus pais que, anos antes, haviam conseguido acabar seu namoro com Nivaldo, viam-se agora obrigados a aceitar Muniz, que tampouco era formado – o menor dos males, diante de não ser solteiro.

O casal quis alugar um apartamento em Salvador, mas os pais de Nicinha não queriam separar-se dela. Com todo o embaraço da situação, Muniz passou a viver com eles, na mesma casa. Não pôde divorciar-se oficialmente, por recusa da ex-mulher, com quem, por ironia, havia se casado às pressas, devido a uma gravidez psicológica. Não pôde casar-se novamente, mas passou a viver com a mulher que amava.

Em 1964, ano do golpe que deixaria o Brasil nas mãos de uma ditadura militar por vinte anos, nascia o primeiro filho de Muniz e Nicinha. José Muniz Barreto Filho foi o nome que ficou na certidão. Zé, como seria para sempre chamado por seus pais e futuros irmãos, teria vida breve. Prematuro, não passaria de vinte e três dias. Se seus pais se sentiram punidos pelo Deus em que acreditavam, não se sabe. Mas dizem que o rosto dos dois ficou com um sério semblante de infelicidade.

 

Vinte e três dias de idade       

 

O primogênito nascera prematuro,

como se com pressa de conhecer a vida.

Mas sua vida não seria bem-vinda à vida.

 

Vinte e três dias de idade.

Esse seria todo o tempo de sua breve vida.

Tempo insuficiente para um ser ser completamente?

Sua boca

           ainda berço de palavras jamais ditas

                                                            e já tumba de silêncios.

Do seu berço

                       sua ausência emanava

                                   preenchendo o vazio do seu novo quarto…

            

Imagino meu pai inerte,

plantado numa plataforma disforme,

à espera de um novo rumo a tomar.

 

E minha mãe, amarga.

No seu ventre magro, os pontos do parto – porta da perda.

Sua alma, do corpo arrancada, a perder-se, correndo espaços…

 

Imagino meus pais de luto, mesmo de branco,

mesmo que o tempo enevoasse a lembrança,

mesmo que outros filhos nascessem.

 

Os pertences de Zé não nos pertenceriam.

Antes de se dispersarem no tempo,

seriam raros objetos jamais possuídos,

a seguir sem dono

(para nós, só seus),

sobrevivendo à sua falta entre fronhas,

guardados com cuidado nas gavetas de minha mãe:

escova de cabelo, chuca, mantas, sapatos de croché

envelhecendo intactos na proteção de sacos plásticos,

envelhecendo novos –

velhos objetos novos do irmão mais velho,

morto aos vinte e três dias de idade.

 

De luto, mesmo de branco, mesmo que o tempo enevoasse a lembrança, mesmo que outros filhos nascessem. Três outros filhos nasceriam do amor de Nicinha e Muniz, e seriam por eles muito amados: Maria Amélia, Natan José e Maria Emília. Os três saberiam da vida breve do irmão Zé, saberiam dos seus objetos, saberiam que ele fazia parte da família, saberiam amá-lo, mesmo morto. Mas a morte de Zé não seria a única a agredir Nicinha. Misturando-se ao nascimento e infância dos seus filhos, a morte levaria, no fluir de dez anos, sua mãe, seu pai e seu irmão.

Em 1965, meses antes do nascimento de Maria Amélia, sua avó, que não chegaria a vê-la, mas a quem o seu nome prestava homenagem, faleceu de repente de alta de glicemia. Foi então que Nicinha se desesperou. Como diria à sua filha, anos mais tarde, durante esse período, ela perdeu, deu, menosprezou muito do que tinha. Foram joias, vestidos, porcelanas, pratarias, mas principalmente o piano. Talvez por desejar silêncio, deixou de tocar. E o piano abandonado, descuidado, numa casa úmida, foi se desfazendo.

Natan José, o menino que nasceu em 1966, recebeu os nomes do tio e do pai. Logo após a sua chegada, uma moça de nome Ana entrava naquela casa para tomar conta dele. Anos antes, quando políticos deixavam ali leite para os seus eleitores mais pobres, acompanhada de uma vizinha, Ana entrara até a varanda. Mas sairia de mãos vazias, após ouvir as palavras:

— Não chegou. O leite não veio.

Foi a vizinha, então, quem lhe disse:

— Essa é a filha de seu Atanael.

O tempo em que Ana e a dona da casa se olharam foi mínimo. Olharam-se sem saber da longa amizade que o futuro lhes reservava. A dona da casa deve ter visto em Ana o rosto de uma menina pobre, como o de tantas outras pela redondeza. Já Ana viu no seu rosto algo de radiante, que não veria novamente, quando, um ano após a morte de dona Amélia, entrava para trabalhar naquela casa.

A morte da mãe deixara marcas imensas em Eunice, mas a vinda dos filhos dava-lhe vida. De aparência frágil, no fundo ela tinha muita força, e sabia fazer-se forte quando estava fraca, sabia se reerguer. Não era à toa que tanto se identificava com uma frase de Cecília Meireles:

 

Aprendi com a primavera a deixar-me cortar e voltar sempre inteira.

 

Em janeiro de 1969, ano em que o homem pisaria na Lua pela primeira vez, nascia Maria Emília. Seu nome, uma homenagem à mãe que seu pai perdera ainda menino. Seu parto, mais uma cesariana, seria o último a marcar para sempre aquela barriga.

 

A vasilha da barriga de minha mãe

 

Ao nascer, minha irmã mais velha

esvaziou a vasilha

em que minha mãe a preparava.

 

Minha mãe, em seguida, parou

e me preparou,

me fez a mim como eu sou.

Feito, eu, seu único filho,

ao nascer, esvaziei a vasilha

para que se fizesse sua última filha.

 

Minha irmã mais nova foi a última da fila

e completou a família,

esvaziando de vez a vasilha.

 

Vasilha onde o princípio de nós adormecia,

enquanto nossa mãe nos aquecia

numa espécie de calor em banho-maria.

 

Hoje, só uma cicatriz

que servindo de tampa

mancha e tranca

a barriga onde a vasilha se encontra –

vasilha já há muito tempo vazia.

 

Mas as paredes daquela vasilha,

em que nos fizemos, antes de sermos,

não se esvaziaram de todo,

pois o amor de nossa mãe vem das entranhas,

nasceu muito antes de nascermos

e por nossas entranhas deve ter entrado

e deverá ir conosco

até que tenhamos passado para o outro lado.

Ou talvez mais além,

muito além do futuro,

pois muito antes do passado.

 

Os nomes Maria Amélia Muniz Barreto, Natan José Muniz Barreto e Maria Emília Muniz Barreto ainda iriam intrigar um dia uma aluna de Sorinha, pela visível ausência neles de uma palavra. A menina Lizzia, ao perguntar à sua mãe, Rizete, porque a palavra Palma não fazia parte do sobrenome dos filhos de sua professora, recebeu como resposta:

— Você não conhece Sorinha? Veja a sonoridade do nome Muniz Barreto! Você acha que ela trocaria e colocaria Palma?

A resposta de Rizete convenceu sua filha e a fez crer que Sorinha se preocupava muito mais com a sonoridade dos nomes que dava aos filhos do que com costumes matrimoniais. Quem sabe outros pais, amigos de Nicinha, tenham usado desculpas parecidas para guardar de seus filhos o segredo do não casamento dela? Dessa forma, Melo, Zezo e Mila, apelidos com os quais os filhos de Nicinha seriam conhecidos em Periperi, cresceriam ignorando esse fato. E ainda que tenham sido vistos, por alguns, como bastardos, foram sempre, por todos, respeitados. É certo que com o tempo notariam, com estranheza, a ausência do sobrenome materno no nome que carregavam, assim como a falta de fotos do casamento dos pais, numa casa repleta de retratos, mas sem que isso os levasse a desconfiar dos fatos – eram felizes. Quando bem novos, Melo e Zezo gostavam de rimar seu sobrenome com duas cores. E não se cansavam de rir, ao repetir: “Natan José Muniz Barreto, misturado com branco e preto.”

O avô Natanael tinha muito carinho pelos netos. Velho, magro, de andar lento, cabelos brancos e olhos de um negro azul, trazia para eles, de seus passeios por Periperi, enormes sacos de queimados de mel. Gostava também de dar-lhes copos de uma vitamina que preparava de manhã, e que apelidara de “levanta cadáver”. No copo do liquidificador, além do leite, ele ia jogando tudo o que via na frente: pão dormido, café quente, banana, pepino, tomate, ovos inteiros, bolo, inhame, batata cozida, e outras sobras ao alcance da mão. Embora não quisesse dar aquela bebida aos filhos, Nicinha preferia não interferir. Ana a ouvia dizer em voz baixa:

— Oh, meu Deus, meu pai fez com tanto carinho!

O tio Natan era também muito afetuoso com os sobrinhos, a quem chamava de “meus meninos”. Ele trabalhava como contador numa repartição da prefeitura, em Periperi mesmo, e ao voltar para casa gostava de lhes trazer tabletes de doce de leite. À sobrinha e afilhada, brincando, fazia sempre a pergunta:

— Se mexerem com a menina de tio Dindo, o que é que tio Dindo faz?

— Quebra no pau! Melo lhe respondia sorrindo.

A praia, calma, era lugar de passeio. A ela, Zezo e Melo iam muito, levados pelas mãos cuidadosas de Ana. E entre banhos de sol e mar, viam circular um jovem que tirava retratos dos banhistas. O pagamento só era feito depois, quando lhes fosse entregue em casa um monóculo, ao que chamavam de binóculo. A foto colorida vinha dentro dele e só podia ser vista fechando-se um dos olhos e dirigindo a pequena luneta à luz.

Conviviam também com “Ana Pequena”, uma menina do Alto do Cruzeiro que passou alguns anos com eles. À noite, antes de dormir, além dos latidos de Rin Tin Tin e Baleia, todos ouviam estórias que só “Ana Grande” sabia contar, como a do Amigo Folhagem, um coelhinho que, após enganar a onça, fingindo-se de doente para nela montar como num cavalo, via-se forçado a rolar o corpo no mel, cobrindo-se em seguida de folhas, a fim de matar a sede à beira do rio. Mas, no final, a onça acabava descobrindo o seu disfarce e ia atrás dele, perseguindo-o floresta adentro.

A presença dos filhos fez com que o semblante de infelicidade fosse se diluindo do rosto de Nicinha. Mas como andaria o amor que a fizera tão determinada a tudo enfrentar? Muito provavelmente, a paixão dos dois já havia passado, e sem o véu de ilusões, viam a realidade de frente e percebiam o quanto eram diferentes: ela a adorar dançar, ele a odiar festas; ela a querer viajar, ele a não querer sair de casa; ele a só gostar do simples, ela a saber apreciar tanto o simples quanto o sofisticado.

Sem nenhum prazer em trabalhar com vidros, Muniz imaginou que pudesse mudar de profissão. Vindo de uma fazenda do interior, tentou reencontrar suas raízes rurais. Passou a arrendar uma plantação de cana-de-açúcar, em Santo Amaro, e ser dono de algumas cabeças de gado, numa roça em Portão. A roça era também lugar de lazer, para onde levava a família, os amigos, os parentes e os alunos de sua mulher, nos finais de semana e nas férias. Era cheia de pés de pitanga e mangaba, pequenas frutas que, ao cair, o capim escondia, mas as mãos encontravam. Alguns bois, como Botafogo, metiam medo; já as vacas eram mansas – o leite caía quente na lata e era logo bebido. Longe da casa rústica, entre as pedras, corria um rio de água clara, água para beber e banhar-se. As piabas, que as mãos dos meninos tanto tentavam pegar, nadavam bem na beira, encantando os olhos.

A roça continuou nas mãos de Muniz por alguns anos. Já a plantação de cana não deu certo; um incêndio destruiu o engenho. A tarde caía e ainda cai na memória de Melo e Zezo do dia em que deixaram a fazenda para trás. Uma senhora simpática lhes ofereceu um cesto de mangas carlotas, mangas menores do que as que conheciam e talvez mais doces. A luz alaranjada derramada por tudo, naquele fim de dia, os acompanhou a princípio, até que o breu tomasse conta da estrada esburacada por onde seguiam numa caminhonete, o pai ao volante e a mãe na outra janela, ambos tentando esconder dos filhos a tristeza que tomara conta deles. Por falta de tino comercial, ou falta de sorte, Muniz foi à falência. Chegou a pedir dinheiro emprestado ao cunhado Natan, dinheiro que demorou de pagar, deixando ainda mais tensa a relação entre os dois. Nicinha empenhou joias, que não voltaria a ver, e ajudou o companheiro como pôde.

A casa também não era mais a mesma; havia tacos soltos, paredes envelhecidas, utensílios enferrujados. As festas políticas de antes, os grandes almoços na época das eleições (para os eleitores que vinham do interior), em que seu Natanael gastava muito do que ganhava, sem querer ser ressarcido, haviam finalmente tido fim. Desde 1950, com a morte trágica, em acidente aéreo, de Dr. Lauro, então deputado federal em campanha pelo governo da Bahia, o seu envolvimento com a política muito se diluíra.

A Escolinha, no entanto, foi seguindo o seu rumo, crescendo, com Sorinha ao leme. Passou para o lado direito da casa, ocupando salas, que viraram salas de aula. E, com o passar dos anos, à medida que o número de alunos foi aumentando, ganhou outros cômodos.

Mas e o piano? No princípio, as crianças iam para a “sala grande” e se sentavam no chão para ouvi-la tocar alguma música clássica. Porém, na lembrança dos filhos, de Melo e Zezo, ao se darem conta de que havia um piano em casa, era já um piano estragado, com algumas teclas mudas, outras soltas, outras com o revestimento de marfim descolando. A tampa de madeira da frente, caída, deixava à mostra as entranhas do instrumento e a trama por trás das teclas e dos pedais – cordas presas a pinos vibravam à batida macia dos martelos de feltro, depois do toque dos dedos dos dois irmãos. A mãe, no entanto, ao tentar tocar qualquer melodia, balançava a cabeça, desculpando-se – o som emitido nunca era o que ela esperava ouvir. Seus dedos, sem prática, haviam perdido a agilidade. E o piano que seu pai lhe dera quando criança já não era o que fora um dia. Quem melhor do que ela para saber distinguir? Depois, passou para o corredor, o piano, onde ficou algum tempo, as cordas enferrujando, se afrouxando, se desprendendo. Terminou no quintal, apodrecendo aos poucos, enchendo-se de chuva, inchando-se ao sol, como um barco encalhado, entre árvores e esquecimentos.