Numa noite azul de insônia
A meu pai
Numa noite azul de insônia
nosso pai se encantaria
com o brilho de uma estrela.
Se a estrela-d’alva brilhava
mais alva que de costume,
precisávamos todos vê-la.
Debruçou-se nas sacadas
e balcões do nosso sono
e nos viu vazios de nós.
Suas mãos mornas e meigas,
que tudo sabiam de vidros,
dos seus cortes e castigos
e dos seus silêncios limpos,
também sabiam de peles,
de cuidados e carinhos.
Suas mãos mornas e meigas,
sem fazer nenhum alarme,
acordaram a nossa carne.
Atravessamos a casa
e as fases finais do sono:
quarto, corredor, sala,
porta, varanda, portão.
Atravessamos a rua
como se só fosse nossa,
sem perigo, no umbigo
do subúrbio adormecido.
No outro lado da rua,
de costas às fechadas portas
de um simples supermercado,
pusemo-nos lado a lado,
com os pés ao chão plantados.
Meu pai esticou o braço,
como quem estica um arco
e foi lançando ao céu
as flechas do nosso olhar –
seu alvo era a estrela-d’alva.
Meu pai que jamais seria
o professor que ser queria
nos ensinava uma lição
que eu jamais esqueceria:
Contemplar é aplaudir sem precisar de palmas.
No azul escuro da noite,
quase de madrugada,
a estrela-d’alva brilhava.
Nós aplaudíamos em silêncio
a claridade de uma estrela.
Meus olhos meninos,
ainda verdes de vida,
já se encharcavam de encanto –
viver é se encantar.
Atravessamos a rua,
como quem atravessa um rio
e o fluxo do asfalto
ralentasse os nossos passos.
Minha mãe fechou o portão de ferro,
como quem ergue uma barragem.
Mas a enchente de encantos
já inundara as nossas margens.
Naquela noite,
em nossos leitos,
boiaríamos acordados..